Dia desses meus meninos participaram de uma corrida infantil num parque de São Paulo. Não foi a primeira experiência deles num evento como esse. Tudo estava tranquilo até começar a primeira bateria. Enquanto aguardávamos o horário deles (as baterias são definidas por idade e sexo da criança), uma movimentação bem do nosso lado me chamou a atenção. Era um menino, dos seus 9 anos, lamentando que tinha perdido a prova. Até aí, ok, não fosse a reação do pai "Você não se esforçou. Deu no que deu... Não mereceu ganhar". Para tudo! O moleque já estava decepcionado com a sua colocação e o pai, em vez de dar apoio, de levantar sua moral, responde dessa forma? Fiquei chocada. Até por que não estávamos falando em atletas profissionais, eram crianças participando de um evento que incentiva a prática esportiva. Ponto! Mas esse caso isolado me fez observar cada vez mais as reações alheias...
Um pouco depois foi a corrida da turminha do Rafa, meninos de 4 anos de idade. Portanto, todos pequenos, sem nenhuma noção de técnica esportiva. O que eles sabiam é que assim que a faixa fosse erguida eles precisavam sair correndo. É uma brincadeira, que incentiva o esporte e, portanto, deve ser uma diversão para a criança. Rafa não foi dos primeiros, nem dos últimos. Mas chegou sorrindo por que tinha cumprido sua missão naquele momento. E foi todo feliz para a fila da medalha. Sim, nessas corridas todas as crianças recebem medalhas de incentivo, de participação. Eis que um novo episódio me chama a atenção. Um não, dois. Dois meninos, que também não foram os primeiros colocados se põem a chorar. Um deles chegava a fazer birra, se jogava no chão, queria bater no pai. E o pai, sem saber o que fazer, ficava tentando acalmar aquela pequena criatura descontrolada. "Eu tinha que ser o campeão. Eu perdi!", dizia o dito cujo. O outro chorava inconsolavelmente e o pai demonstrava claramente que estava frustrado com a derrota do filho. Derrota? Como assim? Pois é, o pai quer um filho campeão e, naquele momento, parecia ser mais infantil do que o próprio menino.
Os episódios ficaram na minha cabeça. Desde muito cedo proponho jogos em casa e nunca tive o hábito de perder só para deixar meus filhos felizes. Não que isso seja errado, acredito até que uma vez ou outra você possa fazer esse "agrado" pro pequeno. Mas aqui, eles acostumaram a perder sim desde muito cedo. Se gostam? Claro que não. Quem gosta de perder? Mas perder faz parte da vida e é preciso aprender a lidar desde cedo para não sofrer mais ainda depois. Matheus, de sete anos, por exemplo, já participou de torneios de xadrez e futebol onde não foi o primeiro colocado. Lembro de um torneio em especial que ele precisava ficar entre os 10 primeiros colocados para ir pra segunda fase. Ficou em sexto. Conseguiu o que queria, mas estava com a cara fechada. Quando me aproximei, ele confessou "O primeiro lugar ganhou além da medalha também um troféu. Eu queria muito". Conversamos muito e, aos poucos, ele conseguiu perceber que era um campeão, que deu o melhor de si, que se esforçou, se preparou, mas que naquele momento outras cinco crianças foram melhores que ele. Em outras situações já vi lágrimas escorrendo nos seus olhos de menino por que perdeu um pênalti que ele achava importante, por que ficou no banco de reserva enquanto queria ser titular, por que não conseguiu atravessar a piscina no tempo que ele achava ser o melhor.
Rafa no final da prova: feliz por completar a prova! |
Segundo a pedagoga (e mãe!) Camila Garoli, uma boa conversa entre pais e filhos é sempre o melhor caminho. "Muitas vezes a criança não consegue refletir sozinha sobre o que sente quando perde e nós, adultos, precisamos ajudar com questionamentos simples do tipo 'O que você está sentindo?' 'Por que perder no jogo é ruim?' Verbalizando a criança pode perceber que não há por que ficar tal mal por não conseguir ganhar sempre", explica.
O que não pode acontecer, segundo Camila, é evitar que a criança participe de determinadas atividades só para evitar a frustração. "Jogos, torneios, campeonatos e qualquer outra atividade que envolva regras e convivência em grupo proporciona para a criança desde o primeiro contato valores que ela não desenvolveria na simples teoria. Saber ouvir, obedecer regras, perceber que nem sempre se pode ganhar, que tudo tem o momento certo, são ações que se começarem desde muito cedo, as crianças levarão com muita naturalidade por toda a vida", diz.
Matheus e o futebol: aprendendo desde cedo a ganhar e perder! |
A competitividade excessiva e o saber ganhar e perder (afinal, até para ganhar é preciso saber e nunca humilhar, nem inferiorizar os outros) virou assunto por aqui. A seguir um ping-pong com a psícóloga do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas - USP, do Núcleo Paradigma e do ACACIA-Psi, dra. Giovana Del Prette.
Em qual faixa etária a criança, ainda pequena, já começa a demonstrar ser competitiva?
Dra. Giovana - Acho que primeiro é importante definir o que é "ser competitiva", porque nós podemos olhar para muitos comportamentos diferentes e enxergar neles competitividade. Um bebezinho que chora porque o outro tomou o brinquedo de suas mãos pode estar sendo "competitivo"? Ou estaríamos falando mais de uma reação natural, próxima ao que chamamos de "instintiva"? Aliás, muita gente defende que é importante estimular as crianças a competirem com base nesse argumento de que seria um "instinto natural". Isso é um equívoco, que é importante ser esclarecido. "Competitividade" é um constructo social, ou seja, o significado mais profundo de ganhar, perder e competir é instituído socialmente. A competição num sentido biológico (mais instintiva, cuja função evolutiva é a sobrevivência da espécie), não tem, nem de longe, o mesmo nível de profundidade. Por esse motivo, nós podemos falar de competitividade nas crianças apenas quando conseguimos ver em suas reações este nível de compreensão do significado de ganhar e perder. Reações como a que exemplifiquei, em bebês, não são o caso.
Dra. Giovana - Acho que primeiro é importante definir o que é "ser competitiva", porque nós podemos olhar para muitos comportamentos diferentes e enxergar neles competitividade. Um bebezinho que chora porque o outro tomou o brinquedo de suas mãos pode estar sendo "competitivo"? Ou estaríamos falando mais de uma reação natural, próxima ao que chamamos de "instintiva"? Aliás, muita gente defende que é importante estimular as crianças a competirem com base nesse argumento de que seria um "instinto natural". Isso é um equívoco, que é importante ser esclarecido. "Competitividade" é um constructo social, ou seja, o significado mais profundo de ganhar, perder e competir é instituído socialmente. A competição num sentido biológico (mais instintiva, cuja função evolutiva é a sobrevivência da espécie), não tem, nem de longe, o mesmo nível de profundidade. Por esse motivo, nós podemos falar de competitividade nas crianças apenas quando conseguimos ver em suas reações este nível de compreensão do significado de ganhar e perder. Reações como a que exemplifiquei, em bebês, não são o caso.
Como os pais (ou cuidadores) devem se comportar diante desse pequeno ser, que já demonstra querer apenas ganhar?
Dra. Giovana - As crianças aprendem uma infinidade de coisas (desejáveis ou não) por dois processos básicos: 1. exemplo e 2. significado atribuído. Se os pais são competitivos, a criança de algum modo está exposta a isso e aprende pelo exemplo. Aprendizagem pelo exemplo vale para tudo. O significado atribuído também é importante. Por exemplo, uma criança de dois anos está correndo com outra, mas chegou por último. Alguém vem e fala: "Você perdeu!!!" Talvez ela ainda não entenda o significado dessas palavras, mas irá aprender a entender a depender do tom emocional que elas forem proferidas (por exemplo, tom de deboche, de pena, de julgamento). Aos poucos, ela aprende que "perder é ruim" a partir do significado que ela observa atribuírem a isso, e passa a evitar perder. O mesmo vale para o significado que ela observa os outros atribuírem ao "ganhar" e ao próprio "competir". Além disso, os pais são seus grandes modelos, e o significado que eles atribuírem será mais ainda assimilado.
Há pais que adotam a postura de sempre perder pro filho em jogos ou brincadeiras para deixá-lo feliz. Até que ponto isso é bom e quando isso deve mudar para começar a ensinar essa criança a perder?
Dra. Giovana - Acho que a mensagem subjacente aqui é: "se estou deixando você ganhar sempre para ficar feliz, então perder deve ser muito ruim". É mais uma maneira, indireta, de atribuir significado. Mas também os pais não precisam ganhar sempre porque muitas vezes a criança não tem toda a habilidade para ganhar num jogo contra um adulto. Quando os pais jogam, ainda que eles se divirtam, eles também estão agindo como educadores, e portanto precisam prestar atenção na capacidade da criança de jogar/brincar e, mais ainda, o que estão ensinando aos filhos se só ganharem ou só perderem. Uma boa pergunta a se fazer é: como isso vai ajudar meu filho a lidar com outras situações e com pessoas que não necessariamente brincarão com ele com propósitos educativos?
Pais que incentivam a competitividade no filho exageradamente e que muitas vezes o culpam por derrotas estão, de certa forma, prejudicando essa criança? Explique.
Dra. Giovana - Sem dúvida. A competitividade em excesso pode trazer sofrimento para a criança ainda que ela pudesse estar entre os ganhadores 100% das vezes. Ela polariza o desempenho em bom (ganhador) ou ruim (perdedor), com grandes chances da criança se perceber como ruim, pois só existe um "primeiro lugar" ou, como dizem por aí, "segundo lugar é igual ao último". Além disso, a criança sempre irá encontrar alguém melhor do que ela para se comparar, o que pode sempre deixa-la se sentindo inferior. A criança que conseguiu ser "a melhor" poderá se ver constantemente ameaçada de perder seu posto, gerando ansiedade e relacionamentos pouco amistosos. E, na base de tudo isso, a criança passa a se preocupar mais com o produto do que com o processo: ela não aprende a observar se a brincadeira foi divertida, e sim que só vale à pena se tiver ganhado. É como se você fizesse uma viagem, em uma linda estrada, que dura várias horas e muito esforço, e só ficasse feliz quando chega ao destino antes dos outros carros, e só por alguns instantes. A felicidade da competição é efêmera e é um desperdício de outras felicidades mais duradouras e que não dependem da comparação.
Qual a importância de jogos, torneios, campeonatos, competições para a criança? Em qual faixa etária a criança deve estar exposta e aprender a lidar com o ganhar ou perder?
Dra. Giovana - Têm sua importância lúdica e de aprendizado em relação ao conteúdo do torneio/jogo (por exemplo, karatê, xadrez, matemática). A competição é um momento onde o desempenho da criança pode ser prestigiado pelas pessoas e seu esforço reconhecido. Também costuma ser um evento bastante festejado, em que famílias se reúnem e de alguma forma celebram. Nesse sentido, não existe faixa etária definida para participar.
Quais dicas podemos dar para pais que não sabem como lidar com filhos competitivos. De que forma é possível ajudar uma criança a aprender a lidar com a perda, que muitas vezes é inevitável?
Dra. Giovana - Quando os pais se deparam com a constatação de que o filho já é competitivo, é importante refletir sobre de que forma eles podem estar alimentando esta competitividade mesmo quando estão tentando fazer o contrário. Por exemplo, às vezes os pais podem ficar tão preocupados com "traumas" psicológicos caso o filho perca uma competição, que acabam alertando demais para este aspecto, como ao dizer: "mas você sabe, né, que se você perder, não pode ficar chateado!". Ao dizer isso, novamente, o significado atribuído à perda é o de que é algo muito ruim (pois faz a criança ficar chateada) mas, o que é pior, ela não pode se sentir assim. Isso faz a criança ficar em conflito com seus sentimentos. Dar menos alarde ao aspecto ganha-perde muitas vezes pode ser melhor, quando os pais ressaltam os outros aspectos da brincadeira e demonstram se divertir independentemente do resultado.
O espirito de competição não é de todo um vilão. A competitividade pode contribuir para o esforço, o aprendizado, a dedicação. O que você acha sobre isso e como deve ser moldada para ser uma qualidade da criança e não um problema?
Dra. Giovana - É possível uma competição "divertida" sim, quando a disputa faz parte da brincadeira, tornando-a, neste aspecto, bastante emocionante. Quando ela não ofusca a graça de outros aspectos do jogo, e nem atrapalha a interação entre os participantes, ela fica bem integrada ao esforço, à aprendizagem e à dedicação. Não é uma boa ideia dizer que a criança "não pode ficar triste" quando perde. Ao invés disso, pode ser mais útil ensinar a máxima "perder com elegância e ganhar com humildade": se ela perde, pode até se sentir desconfortável mas consegue regular seus sentimentos e parabenizar o adversário e, se ela ganha, consegue se colocar no lugar do colega e não humilha-lo com sua vitória.
Como os pais podem ajudar um filho que não sabe perder, num momento de derrota, logo após uma perda?
Dra. Giovana - Além de tudo que foi ressaltado na questão anterior, eu acrescentaria ainda a importância dos pais levarem a sério o sentimento da criança. Isso significa: 1. não tentar diminuir o sentimento ("não foi nada, isso é bobagem!), 2. não tentar comparar seu sentimento com o de outra criança ou consigo mesmo ("eu perdi ontem e nem fiquei triste!"), 3. não tentar eliminar o sentimento da criança com promessas de vitória que só aumentam o valor da competição ("não fica assim, da próxima vez você vai vencer") e 4. não tentar inferiorizar o ganhador para ela se sentir melhor ("foi só sorte dele, ele nem merecia…"). Muitas vezes os pais fazem isso porque para eles próprios é difícil ver a criança em sofrimento e de fato pode funcionar a curto prazo, mas a longo prazo só salienta a importância de ser competitivo em excesso, de ganhar e de perder. É mais válido simplesmente deixar a criança falar sobre o sentimento e empatizar com o que ela sente ("você ficou triste porque não ganhou dessa vez, né? Imagino o quanto você esteja chateado, eu vi o quanto você se esforçou"). Se a criança, além de se sentir mal, também tem uma ação negativa, aí sim os pais podem colocar limites, separando bem o sentimento da ação ("você pode ficar com raiva, mas não pode jogar suas coisas no chão por isso!).
Dra. Giovana - Além de tudo que foi ressaltado na questão anterior, eu acrescentaria ainda a importância dos pais levarem a sério o sentimento da criança. Isso significa: 1. não tentar diminuir o sentimento ("não foi nada, isso é bobagem!), 2. não tentar comparar seu sentimento com o de outra criança ou consigo mesmo ("eu perdi ontem e nem fiquei triste!"), 3. não tentar eliminar o sentimento da criança com promessas de vitória que só aumentam o valor da competição ("não fica assim, da próxima vez você vai vencer") e 4. não tentar inferiorizar o ganhador para ela se sentir melhor ("foi só sorte dele, ele nem merecia…"). Muitas vezes os pais fazem isso porque para eles próprios é difícil ver a criança em sofrimento e de fato pode funcionar a curto prazo, mas a longo prazo só salienta a importância de ser competitivo em excesso, de ganhar e de perder. É mais válido simplesmente deixar a criança falar sobre o sentimento e empatizar com o que ela sente ("você ficou triste porque não ganhou dessa vez, né? Imagino o quanto você esteja chateado, eu vi o quanto você se esforçou"). Se a criança, além de se sentir mal, também tem uma ação negativa, aí sim os pais podem colocar limites, separando bem o sentimento da ação ("você pode ficar com raiva, mas não pode jogar suas coisas no chão por isso!).
No caso de crianças competitivas demais e que começam apresentar um desconforto além da conta com a derrota, é indicado algum tipo de terapia ou acompanhamento psicológico? Como são essas sessões?
Dra. Giovana - A terapia sempre é indicada para quando os pais não estão conseguindo lidar sozinhos com o problema e a criança está sofrendo. O psicólogo pode ajudar a criança a lidar com a competitividade e também os pais a lidarem com a criança, com orientações mais específicas. Muitas vezes a dificuldade da criança com determinado problema pode ter por base outra dificuldade mais geral, como por exemplo: crianças que se exigem demais, crianças que têm ansiedade de desempenho, crianças que se sentem muito inseguras, que não toleram bem frustrações, não lidam bem com seus sentimentos etc. O papel do psicólogo é analisar o problema que traz a criança à terapia de modo mais profundo, para buscar a raiz desse problema e ensinar à criança novos jeitos de acessar seus sentimentos, de se expressar e de reagir.
Dra. Giovana - A terapia sempre é indicada para quando os pais não estão conseguindo lidar sozinhos com o problema e a criança está sofrendo. O psicólogo pode ajudar a criança a lidar com a competitividade e também os pais a lidarem com a criança, com orientações mais específicas. Muitas vezes a dificuldade da criança com determinado problema pode ter por base outra dificuldade mais geral, como por exemplo: crianças que se exigem demais, crianças que têm ansiedade de desempenho, crianças que se sentem muito inseguras, que não toleram bem frustrações, não lidam bem com seus sentimentos etc. O papel do psicólogo é analisar o problema que traz a criança à terapia de modo mais profundo, para buscar a raiz desse problema e ensinar à criança novos jeitos de acessar seus sentimentos, de se expressar e de reagir.
Agradecimento especial à pedagoga Camila Garoli Vilela e à psicóloga, dra. Giovana Del Prette, que participaram dessa matéria.
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